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JORNAIS DE HOJE


SEU GOOGLE, NÓS EXISTIMOS
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Seu Google, nós existimos

A luta de um grupo de crianças das favelas de Calcutá para se colocar no mapa do mundo e mudar também as nossas vidas

ELIANE BRUM
 
 
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- Mãe, estou fazendo um mapa da nossa comunidade porque não existe nenhum – disse Sikha, uma menina de 12 anos e olhos muito vivos de uma favela de Calcutá, na Índia. 

- Mas tem mapa de todos os lugares, deve ter um daqui também – disse a mãe. 

- Não tem – Sikha respondeu. 

- Você tem certeza?

- Procuramos no Google e não conseguimos encontrar um mapa da nossa comunidade.

Ao buscar o Google Maps para se enxergar nele, as crianças descobriram que não estavam lá. No lugar onde viviam suas vidas, suas dores, seus sonhos, suas fomes e suas faltas, onde dançavam e choravam, nasciam e morriam, havia só um vazio – um grande nada.

Sua luta para existir – também no mapa – é contada no premiado documentário The revolutionary optimists (Os otimistas revolucionários), de Nicole Newnham e Maren Grainger-Monsen, filmado ao longo de três anos e meio. Com a ajuda do empreendedor social Amlan Ganguly, Sikha e outras crianças desenharam seu mapa. Ao forjar sua inscrição na geografia do mundo, mudaram destinos e salvaram vidas.

O mundo, como Sikha tão bem percebeu, é dividido entre os que estão no mapa – e aqueles que não estão. Não é esquecimento, não é acaso. É violência. Uma violência original – a invisibilidade – que gera todas as outras. Nem os mapas, ou muito menos os mapas, são inocentes. Na Índia, em toda parte. E também aqui.

Era um grande vazio de gente o que os “descobridores” enxergavam ao avistar a terra que chamariam de América. Era um vazio o que se batizaria de “Brasil” no olhar dos portugueses que aportaram aqui. E, mesmo havendo centenas de povos habitando o mapa, foi vazio o que continuaram enxergando enquanto o sangue era derramado e penetrava a topografia. E de novo foi vazio o que a ditadura militar viu ao lançar sua política para a Amazônia, nos anos 70, perfurando-a com o slogan “Terra sem homens para homens sem terra”, matando primeiro numa frase, depois a tiros, aqueles que não poderiam continuar no mapa. Ainda é vazio o que os grandes grileiros de terra tentam convencer os outros que veem, para que então possam se apossar de vastas porções habitadas do território e dizer que não há nada lá. Agora mesmo é vazio o que o governo federal diz ver quando condena povos indígenas, quilombolas, extrativistas e ribeirinhos ao construir as hidrelétricas amazônicas, trocando a frase obscena da ditadura por outra, mais vaga, mas não menos terrível: “Não serão afetados”. O único jeito de não ser “afetados” é não existir. Assim como só foi possível expulsar as comunidades pobres que estavam no caminho das grandes obras da Copa nas capitais enxergando-as como vazio – e não como uma geografia humana e amorosa em que brasileiros que também jogam suas peladas de futebol esculpem suas vidas duramente dia após dia.

As crianças das favelas de Calcutá lembraram ao mundo essa violência que atravessa a história – os sem-mapa. A que o Google Maps deu uma atualidade quase hiper-real. Elas descobriram num clique que não estavam lá. Mas como não estavam lá? O que eram suas vidas para aqueles que não as reconheciam lá? Eram invisíveis, então? Por quê? Se no mapa de quem manda no mundo eram vazio, eram um nada, então decidiram mapear-se, contrapor seu olhar ao não olhar que os varria da história. O que outros têm travado no campo da política e até mesmo no campo da guerra, os pequenos favelados enfrentaram com papel e caneta colorida.

Para fazer o mapa perceberam que precisavam se tornar seus próprios descobridores. Tão importante quanto enxergar o que estava ali era enxergar também o que não estava. E por que não estava? “Que problemas você vê aqui? Por que você acha que nós não temos água potável?”, pergunta a uma vizinha Salim, o menino que acorda as quatro horas da manhã e percorre três quilômetros para conseguir água, como fazem as 884 milhões de pessoas no mundo que a cada dia enfrentam o desafio de encontrar água para beber.

As crianças de Calcutá desenharam as ruas, desenharam cada casa, deram a cada uma um número, para que pudessem ser encontradas. “Para ser honesto, às vezes a gente cometia erros e perdia uma casa ou outra”, disse um dos meninos. Conseguiram, então, com o apoio da Universidade Columbia, celulares com GPS. E passaram a fotografar e a localizar casas e pessoas com o auxílio da tecnologia. Colocaram-se no mapa. E, graças a essa façanha, pela primeira vez uma campanha de vacinação contra a poliomielite atingiu 80% de cobertura na comunidade. (Assista a um vídeo imperdível de quatro minutos aqui. Ainda que as legendas sejam em inglês, dá para escutar muita coisa.)

Se era possível mudar o mapa, como não seria possível mudar a vida? “Como uma menina, eu sempre disse que as coisas aconteciam porque era destino”, diz uma das crianças. “Mas são as coisas que eu faço que determinam meu destino, não a sorte. Então, precisamos esquecer do destino e seguir em frente.” Uma frase poderosa na boca de uma garota de uma favela de Calcutá, já que 47% das meninas indianas são casadas antes dos 18 anos, e menos da metade chega a se matricular no equivalente ao ensino médio. Uma frase poderosa na boca de qualquer menina, em qualquer lugar. Sikha tenta dissuadir as meninas de se casar cedo e luta para que possam jogar futebol. Quer ser advogada ou jornalista. Ao entrar no mapa, ingressou também no território das possibilidades.

As crianças das favelas de Calcutá seguiram em frente. Ao desenhar os contornos da sua geografia, perceberam que era preciso embrenhar-se ainda mais. Tinham de detectar o que devia e o que não devia estar no mapa. Malária, não devia. Diarreia, não devia. Dança, sim. Descobriram que se apropriar do mapa do seu mundo torna possível mudá-lo. E agora, as crianças de Calcutá, os daredevils (“destemidos”), como se autodenominaram, estão no mapa. E passaram a influenciar o mundo para além do seu. Entre as inspirações do The revolutionary optimists, está o lançamento do Map your world (Mapeie seu mundo), que coloca o poder das novas tecnologias nas mãos de agentes de mudança em lugares pobres do planeta.

Ainda que o primeiro passo seja reconhecer e esquadrinhar seu território, como nos mostraram Sikha e Salim, acabar a tarefa por aí seria ainda permanecer passivo, como eles também nos mostraram. É preciso ter a coragem de imaginar um mapa mais largo para conseguir chegar perto de eliminar a poliomielite ou incluir água potável nas casas. Quando moradores de rua distribuem seus pertences por uma casa invisível para a maioria, embaixo da ponte ou mesmo numa esquina, como se estivessem passando da cozinha ao quarto ou conversando na sala com um amigo, evoluem por seu próprio mapa, ainda que ninguém possa ver. Antes de existirem, os mapas são sonhados.

É também a capacidade de imaginar um mapa, de fora e de dentro, que nos define, já que a primeira cartografia de cada um é o corpo. Depois, a casa onde evoluímos em nossa geografia íntima. É triste que os mapas de nossas vidas estejam cada vez mais restritos, mais tacanhos, cheios de barreiras e de senhas, ao refletir esse mundo que vai se apequenando pelo medo do mundo de quase todos os outros. Cada vez mais nosso mapa inclui menos gente, restrito aos interesses territoriais da família ou nem isso, e acaba na porta da rua. Os muros que erguemos internamente deveriam nos escandalizar tanto quanto aqueles que separavam – e separam – os povos no embate da história. Os muitos muros fincados na forma de vidros escuros, portas gradeadas, cercas eletrificadas, as concretas e as subjetivas, são um aviso também de que não reconhecemos todos os outros como parte do nosso mapa. E de que para nós é mais natural desejar um pequeno lago individual que um rio que mata a sede de muitas aldeias. Ao contrário das crianças das favelas de Calcutá, temos sido maus construtores de pontes.

Sikha e Salim só conseguiram se colocar no mapa do mundo porque derrubaram primeiro as barreiras internas e petrificadas por séculos de opressão, que determinavam o que cada um deles podia ser ou realizar. “Agora está na minha cabeça que posso fazer mais pela minha comunidade”, diz uma das crianças. “E quem sabe eu coloque na sua cabeça que você também pode.”

Os “destemidos” das favelas de Calcutá não apenas desafiaram o Google e se colocaram no mapa a partir do seu próprio olhar. Também desenharam-se sem fronteiras e só por isso nos alcançam aqui, em toda parte, incluindo-nos em seu mapa afetivo. Esses meninos e meninas sem água potável para beber foram capazes de tornar o mundo maior – também para nós.

 

Época/Edição VidaNews